terça-feira, 29 de abril de 2008

Entrevista com o Padre Sílvio Couto

Entrevista ao padre Sílvio Couto (Pároco de Santiago de Sesimbra)

Qual é a origem da Festa das Chagas?

A Festa das Chagas tem algo de particular e algo de genérico. A tradição de que a imagem terá aparecido na praia perpassa por outros lugares e por outras imagens também, como é o caso do Senhor de Matosinhos cuja tradição se assemelha um bocadinho à nossa, em que alguém andava na praia e encontra qualquer coisa. Depois há toda a história em que se lança a imagem ao lume e ela salta. Toda essa tradição existe noutros lugares e Sesimbra, nesse ponto, não é excepção. Há ainda toda uma questão à volta do porquê do surgimento das imagens e a história da imagem que dá à costa dentro de caixas e aí penso que é um bocado de tradição. Há quem a considere exagerada e há quem a considere plausível até porque, segundo reza a história, por volta do ano 1530 (mais ou menos) os católicos ingleses quiseram evitar que as imagens fossem profanadas, devido à implantação do Anglicanismo em Inglaterra, deitando-as ao mar. Essa tradição percorre vários lugares e acontece sempre ser um Cristo crucificado. No caso do Senhor Jesus Chagas, e alguns adereços e acrescentos que lhe foram colocando, aí creio que teremos que estudar um pouco melhor. Refiro-me mais concretamente à cabeleira e ao sendal que são, na minha opinião, dois exageros e que se usam apenas para tornar a imagem mais bonita. São dois adereços que poderiam não ser usados e que a imagem não perderia nada com isso.

Encontraram a imagem e, no início, ela foi levada para a Capela da Misericórdia?

Sim, originalmente foi assim que aconteceu. Digamos que a imagem do Senhor Jesus da Chagas andou, durante uns tempos, numa disputa entre a Capela do Espírito Santo e a Capela da Misericórdia e isso também está relacionado com o contexto histórico da altura. Não é por acaso que as capelas, principalmente as que estavam ligadas às Irmandades e ao Espírito Santo, eram populares. Em Sesimbra tínhamos a Capela do Espírito Santo dos Mareantes, que era mais popular, e depois existia a instituição oficial régia que, na altura, era a Capela da Misericórdia. Naquela época o Espírito Santo quase que desapareceu como expressão de fé e caridade popular, tendo sido suplantada pela Misericórdia. Essa mudança institucional originou uma certa disputa pela imagem, que foi resolvida com o tempo e que nesta altura já não existe.

No entanto, ao longo do ano, a imagem continua na Capela da Misericórdia?

Sim, mas está apenas à guarda da Capela, apenas isso.

Porquê o dia 4 de Maio? Foi nesse dia que descobriram a imagem?

Existe uma coisa muito engraçada e que, infelizmente, não tem tradição em Sesimbra que é a questão das Maias e das janelas e portas floridas no 1º de Maio. No fundo, grande parte festa das Chagas com toda a sua linguagem de flores acaba por ser uma tentativa de cristianização dessa festa que existia, mais ou menos pagã, e que ainda hoje tem algumas marcas no nosso país. Aqui estamos a ver se conseguimos implantar essa vivência cristã das janelas floridas que, em tempos, por volta dos séculos XVI, XVII, tinha como tradição fazer um canto popular em que havia uma espécie de culto pagão à Deusa da Fertilidade e que, inclusivamente, era feito com raparigas. A celebração do Senhor Jesus das Chagas no dia 4 de Maio, segundo alguns sociólogos das religiões, é uma cristianização de uma festa pagã que existia e que a Igreja habilidosamente cristianizou por que havia o risco das pessoas se afastarem. Claro que a nível popular não podemos dizer isto às pessoas mas é a verdade. Existem várias marcas pagãs na Festa das Chagas.

Como é que se sabe que o Senhor Jesus das Chagas é o padroeiro dos pescadores? É por ser uma vila piscatória?

Eu penso que sim, mas a questão é mais funda do que simplesmente ser padroeiro de um grupo sócio-profissional ou de uma vivência marítima. De facto, o Senhor Jesus das Chagas não é o padroeiro dos pescadores mas sim de Sesimbra. Penso que o ser padroeiro dos pescadores acaba por ser uma tentativa de fazê-lo assumir uma maior proximidade aos homens do mar e, é inegável que o tem, mas daí a reduzi-lo só a eles, acho um bocado abusivo. No fundo é o padroeiro de Sesimbra, é o padroeiro da vivência marítima da vila. Agora pergunto, o que é que em Sesimbra não é marítimo? É tudo. Desde as pessoas, quer as que trabalham na pesca ou que depois tratam do peixe, aos restaurantes. Não há praticamente ninguém que não tenha na família alguém pescador ou ligado ao mar. Na prática, Sesimbra tem aquilo a que se chama a fé salgada com sal ou a fé com sabor a sal. É uma fé marítima e que envolve quem vive à beira-mar e que tem uma mentalidade própria e uma maneira e forma próprias de ver as coisas. Sesimbra tem a sua realidade. O mais engraçado é que, até ao 25 de Abril, ninguém era pescador, ou seja, a profissão era designada de marítimo. Era o nome que se dava a quem vivia cá e trabalhava no mar. Acho que houve, talvez, um certo exagero em chamar ao Senhor Jesus das Chagas o padroeiro dos pescadores porque ele é o padroeiro de todas as pessoas que vivem e sentem esta religiosidade marítima. Se algum dia deixar de haver pescadores o Senhor das Chagas vai continuar a ter a sua expressão de fé.

Acha que a Festa das Chagas é o ponto mais importante da tradição em Sesimbra? É uma das festas mais importantes do concelho?

Aí tenho que dizer que sim e não ao mesmo tempo. No sentido da mentalidade das pessoas é, sem dúvida nenhuma, a festa mais importante. Mas se formos a ver pela ajuda e patrocínio das autoridades e, mais concretamente da câmara, já sou obrigado a dizer que não o é. Aí o mais importante é o Carnaval, esse é que é patrocinado pela autarquia. Não há terra nenhuma que faça uma festa do seu padroeiro, com um feriado e tudo, com cinco mil euros. É possível que as pessoas, teórica ou romanticamente, chamem a festa do padroeiro como a sua festa, até por causa do feriado, mas na prática não o vivem como os concelhos vizinhos o fazem. A Festa do S. Pedro, no Seixal e no Montijo, e até mesmo o Senhor da Boa Viagem, na Moita, têm muito mais dinheiro e apoio dado pelas autarquias do que nós.

Devia então haver mais investimento por parte da câmara?

Sem dúvida nenhuma e também no sentido de se tentar saber o que se pretende fazer. Até porque, muitas das vezes, e desculpe-me a expressão, a festa só acontece por carolice de uma comissão que trata de tudo.

E essa comissão existe há quanto tempo?

A comissão sempre existiu.

Sim, mas agora é uma Irmandade.

A Irmandade é, digamos, o pano de fundo e de onde emerge uma comissão que é o órgão executivo da Irmandade e que tem um prazo, segundo os estatutos, de três anos. Existe um Juiz que tem a responsabilidade de assumir e dinamizar a festa e que, todos os anos, vai rodando por entre os elementos da comissão de festas. Não é mais que uma espécie de organização das coisas.
Qualquer pessoa pode fazer parte ou inscrever-se na Irmandade?
Claro, apenas tem que ter mais de 18 anos e menos de 70. Depois, para poder participar na comissão de festas tem que ser irmão há pelo menos um ano, é o que está nos estatutos. Neste momento temos cerca de 250 irmãos e irmãs.

Ao longo dos anos têm vindo a acontecer algumas evoluções na festa e na procissão?

Eu acho que sim, ou melhor, a única coisa que não evoluiu ou que não mudou foi o percurso. É preciso que se diga que o percurso da procissão é o mesmo desde o início, é o original. Segundo alguns entendidos esse era o percurso da procissão de Nossa Senhora do Carmo, que era a festa anterior à Festa das Chagas e padroeira do Clube Sesimbrense. O percurso mantém-se o mesmo desde essa altura, mas há outros ingredientes que foram sendo adicionados como, por exemplo, o livro da novena. Há cerca de três anos fez-se um pequeno livro com as novenas para que as pessoas as possam fazer sem estar cá, mas também para que se perceba que há toda uma dinâmica de celebração que foi escrita. Depois, a partir de 2000, há aspectos variáveis que têm vindo a procurar realçar facetas das actividades marítimas. Este ano vamos ter a valorização do peixe na sua generalidade.

E quanto à organização da procissão, como é que tudo se procede?

A procissão é o tal percurso. No texto dos estatutos está escrito e descrito todo o seu ritmo, todos os lugares por onde passa e pára, todos os intervenientes e a sua ordem. Está tudo escrito nos estatutos da Irmandade. A procissão é, no fundo, uma forma de percorrer as ruas mais antigas da vila. Depois há aquele momento mais simbólico, a meio do percurso, em que se fala da palavra de Deus no Largo da Marinha. A procissão é uma peregrinação que parte da Igreja e volta à Igreja, com a particularidade de ter muita gente a participar. Há ainda aspectos muito engraçados como o facto de se colocar alecrim no chão da Rua do Forno e da Rua da Paz. É uma espécie de ruralidade e que lhe dá um certo ambiente campesino.

E isso acontece porquê?

Penso que é mais por ser um ritual das pessoas, de se sentir o cheiro do alecrim que tem uma certa simbologia do ar da serra. E essa deve ser a razão mais profunda. É bom que não se esqueça que o alecrim é perfumado e essa é uma forma de perfumar o ambiente da procissão. Quanto aos intervenientes e a sua ordem, para quem assiste de fora é até bastante interessante. Há quem fique admirado por ver uma grande procissão, que só tem uma imagem, e centenas, senão mesmo milhares, de pessoas todas vestidas com uma capa da mesma cor.

Essa capa tem algum significado especial?

A capa vermelha tem sempre a ver com o sangue, tem a ver com o martírio e com o testemunho. Neste momento já existem três capas em que, no corte são iguais, mas na decoração são diferentes. Algumas capas antigas têm o símbolo do Santíssimo Sacramento e que seriam de uma anterior Confraria ou Irmandade que existia nesta Igreja Matriz. Ao longo dos anos foram aparecendo outras apenas com a imagem do Senhor Jesus das Chagas e, mais recentemente, aquelas, com um símbolo bordado, e que são usadas apenas pelos irmãos. Toda a linguagem do vermelho tem muito a ver com o testemunho, aliás o encarnado é utilizado na Casa da Liturgia nas festas dos mártires ou então quando ligados com Cristo nos momentos da sua paixão. Como a Liturgia que se celebra na Festa das Chagas é a Liturgia da Santa Cruz, os parâmetros são também dessa cor.

Quantas paragens fazem ao longo da procissão?

A procissão tem nove paragens. A imagem pára nove vezes fazendo uma espécie de inclinação ou bênção para nove pontos diferentes. Existem quatro paragens que se fazem viradas para o mar e em que a imagem se volta para o poente. Uma no fundo da Rua D. Dinis, outra mais prolongada no Largo da Marinha, depois pára no outro lado da Fortaleza e quando entra na Rua da Paz a imagem é novamente voltada para o mar. Quando chega ao topo da Rua da Paz é virada para nascente e, até ao final do percurso, são várias as vezes que se volta para Norte, mais concretamente em frente à Câmara Municipal, na avenida da Liberdade e quando chega à Igreja Matriz em que abençoa as pessoas que vão na procissão. As nove paragens têm tipicamente a ver com os nove dias da novena, mas o grande problema de hoje é que elas são feitas apenas de gestos. Creio que no passado seriam paragens com gesto e palavras, porque não tem sentido nenhum fazer uma espécie de vénia sem saber a quê. Isso é uma coisa que ainda não está bem feita, mas a ideia é que quando a imagem pára se faça uma breve oração.

Sabe qual é o peso da imagem?

Não tenho a certeza mas penso que a imagem e o andor devem pesar cerca de 800 quilos.

E quantas pessoas a costumam carregar?

O número é variável. Já chegaram a ser cerca de 12 pessoas e só não é mais porque não há espaço.

Acha que a devoção dos sesimbrenses para com a festa e a imagem tem aumentado?

Eu acho que sim e, pelo que tenho presenciado, há algumas pessoas que, hoje em dia, já percebem o porquê das coisas. Claro que ainda é preciso mais e não é só com as novenas que vamos conseguir chegar mais longe. Até porque há pessoas que vêm à novena num dia mas que depois não vêm no outro. É preciso que as pessoas entendam o significado das novenas, que não é mais que uma contemplação da imagem nas diversas facetas. São nove facetas diferentes e cada dia é diferente do anterior. Há toda uma envolvência em que se contempla a imagem de cima para baixo. Isto é, começamos por contemplar a cruz, que é o suporte, depois a cabeça de Cristo com a coroa de espinhos, o rosto, a boca, depois o lado, de seguida o braço direito e braço esquerdo, depois os joelhos e finalmente os pés. São nove dias em que cada dia tem um significado diferente. Por isso é que é importante as pessoas assistirem a todas as novenas.
Acho que há mais devoção, embora tenha pena que as pessoas não se preocupem em perceber um pouco mais.

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